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Noturnos e Outras Histórias - 2018 - Mauro Trindade

A respeito da formação do estilo do Renascimento europeu, em sua Introdução à Mnemosine, o historiador da arte Aby Warburg escreve que “para todo artista que pretenda impor sua particularidade, a crise decisiva é a obrigação de se haver com o mundo de formas dos valores expressivos pré-formados – quer provenham do passado, quer do presente”. Cinco séculos depois da Renascença, a exigência a cada artista individualmente permanece num incontornável ajuste de contas com seu tempo, que requer “ou a renúncia ou a introjeção dessa massa de impressões que o constrange dos dois lados”, completa o historiador.

Separar o artista de seu tempo e, simultaneamente, compreender o quanto de seu trabalho pertence a sua geração também parece ser parte do ofício de reflexão sobre a própria arte. Seja com pensadores que suprimem a individualidade em favor de conceitos como raça, classe ou latitude, seja com outros críticos que defendem multidões de personalidades sem padrões comuns, incapazes de apreender formas e processos coletivos e perceber um substrato que confira aos artistas a própria materialidade da existência.

Por tudo isso a trajetória de Guilherme Secchin é tão própria e exemplar, como confirmam os 18 trabalhos, entre inéditos e pouco conhecidos, selecionados para esta exposição. Sua carreira possui características muito especiais desde seu surgimento nos anos 1980. Em avaliações bastante discutidas na atualidade, esse período seria marcado pelo retorno à pintura, após duas décadas de experimentalismo e desmaterialização da arte. Inserido num ambiente político que apontava para o fim da ditadura de 1964 e a difusão de preceitos neoliberais na economia, como a defesa do estado mínimo e o estímulo à iniciativa privada, o mercado de arte foi, na época, impulsionado pelo surgimento de novas galerias e pela implantação de centros culturais. Transvanguarda, new image painting ou neoexpressionismo passaram a ser termos amplamente difundidos pela imprensa como formas de uma nova arte, otimista, viva e subjetiva, em contraposição às experiências conceitualistas anteriores.

A célebre mostra “Como vai você, Geração 80?”, realizada no Parque Lage em 1984, ajudou a legitimar a pintura como técnica preferida de uma geração, embora muitos dos 123 artistas participantes trabalhassem com outros suportes e, de forma geral, a “geração” não fosse estética ou politicamente coesa. Dois anos antes, Guilherme Secchin antecipava o movimento e surgia como pintor numa exposição no Bar e Restaurante Macondo, em Botafogo, onde apresentou uma série de aquarelas denominada Os anos de solidão. No ano seguinte, expõe em outro restaurante, o Botanic, no Jardim Botânico, e, em 1984, no Café des Arts, no então Hotel Méridien, hoje Hilton, no bairro do Leme. Num de seus muitos cadernos de desenhos e anotações, escreve que foi no ateliê da praça Pio XI, no Jardim Botânico, que finalizou sua primeira exposição, quando “ainda havia uma certa inocência e muita coragem para viver exclusivamente de arte [...]. Anos 80 – muita droga, muita festa, muita novidade. A voracidade quase me devora”. Secchin carregava diversas questões existenciais, sociais e estéticas que seriam recorrentes na década, com uma pintura gestual e, a seu modo, uma figuração narrativa da vida breve e louca das noites cariocas, da velocidade dos deslocamentos e da força invencível de ser jovem. Dono de um sucesso precoce que se espelhava e participava da cena rock que se difundia nas capitais – o crítico Frederico Morais já escrevia em 1983 sobre o rock-pintura –, o pintor era uma estrela pop. O vídeo Guilherme Secchin, de Fabiano Maciel, foi premiado na época e exibido em casas de cultura ao lado de clipes de Roy Orbison, Depeche Mode, Ziggy Marley, entre outros.

Em dois anos, o número de exposições crescia e seus quadros passavam a ser “muito cotados”, segundo a jornalista Rose Esquenazi.1 Logo o crítico Reynaldo Roels Jr., também do Jornal do Brasil, dedicava algumas linhas ao pintor por sua individual na Arte Erótica que, “apesar do nome da galeria, (seus quadros) têm pouco de propriamente erótico: transmitem o clima, e é o bastante.” O sucesso da mostra ganhou a capa do jornal e matéria de Beatriz Bomfim sobre a onda erótica que tomou o Rio de Janeiro, com destaque para a exposição, “onde cores, olhares e abraços revelam a sensualidade nas noites e nos bares”. Elogiado por colunistas (Artur Xexéo, Anna Ramalho, Tutty Vasques), participou de diversas coletivas, trabalhou com estilistas de grifes famosas e atuou em vídeo com o psicanalista Eduardo Mascarenhas. Expôs várias vezes em Nova Iorque e ainda em Paris, Los Angeles, Maputo e Bogotá. Apareceu em reportagens de decoração, em exemplos de apartamentos pós-modernos, fez capa de revistas, ilustrações de livros e suas obras foram exibidas ao lado dos óleos do grande Antônio Bandeira.

A vida fugaz desse artista do mundo flutuante ganhou novos andamentos a partir dos anos 90: suas obras tornaram-se, então, mais introspectivas e passaram a manifestar sua busca por uma reflexão mais aprofundada da própria pintura. Em 1994, uma viagem a Moçambique e o contato com o país devastado pela guerra o impressionaram terrivelmente. No mesmo ano, pintou 17 acrílicas de forma alegórica e melancólica que refletem suas preocupações com um mundo dividido. Em 1996, com o nascimento do filho Antônio, afastou-se mais e mais das imagens de ruas, bares e clubes de jazz, e passou a trabalhar em telas meditativas, sem a aceleração do passado.

Um novo pintor surge por inteiro na Suíte brasiliana, no ano seguinte, na qual um Brasil edênico ressurge sob a névoa do tempo, numa epifania de ocre e dourado multiplicada nos 36 quadros da exposição no Museu Nacional de Belas Artes. A troca das trinchas por pincéis redondos e o domínio das diluições e transparências na acrílica o afastam de vez do imediatismo de suas pinturas-reportagens para mergulhá-lo em um tempo-nenhum, de reminiscências criadas a partir da obra dos pintores viajantes, em especial, Post, Rugendas, Debret e Theremin. A onipresença dos tons sépia – “a cor da memória”, chega a dizer – aproxima suas telas de manuscritos, pergaminhos de um mundo perdido que existiu apenas na arte. De forma consistente, reúne conceito e técnica para dialogar com a pintura histórica e reafirmar a contemporaneidade como uma desconexão com a linearidade do tempo. Em suas telas nem estamos no passado nem no presente, mas num intervalo indefinível entre o instante e a lembrança, entre o fulgor e a obscuridade.

A descoberta de um câncer, em 2001, o levou a uma série de pensamentos sobre a própria materialidade e transcendência – que a poeta Solange Casotti, sua companheira e parceira, resumiu nos versos secos “nem deus, nem cane/carne e osso!” – e que resultaram na poderosa exposição “De perto, de longe”, de 2010. Ossadas da caixa torácica e da coluna vertebral saltam de um colorido agressivo, assimétrico e confuso sobre pequenos resíduos das paisagens douradas que ele realizou, pelo menos, até a individual “Terra” (2005). “O que antes era superposição (entre fases) agora é intercalação”, comenta o artista. As obras cheias de espanto reviram os corpos pelo avesso em imagens aberrantes. Numa delas, uma mão aponta para estranhas vísceras sob a legenda “olhe para dentro”, referência irônica ao “conhece-te a ti mesmo” do Oráculo de Delfos. Não conhecemos.

Boa parte das pinturas selecionadas para esta exposição são obras da maturidade do artista. Durante o tratamento, Secchin viajou a São Paulo várias vezes e considerou o impacto da metrópole “inevitável” em sua obra. As séries Paisagem concreta e Cidade, o díptico Arquitetônicas Paisagens e oito telas Sem título vão muito além das costumeiras críticas à cidade de concreto e sua hostilidade para relevar nos nichos e desvãos das construções, sob as lajes e janelas despidas de beleza, graça e intensidade inesperadas, cuja luz ilumina o vazio que nos rodeia. A pintura ontológica de Guilherme Secchin se engaja até o final na batalha entre o Ser e o Nada e na defesa do mundo a despeito de toda a desesperança. Nem mesmo a especulação imobiliária e o adensamento urbano subjacentes ao caos arquitetônico conseguem esterilizar a cidade, metáfora do próprio humano e de sua sobrevivência.

Nave ainda mantém a cor e o ímpeto de outros trabalhos dos anos 90, mas o navio cercado pela escuridão sugere uma premonição dessas séries urbanas com vários anos de antecedência, assim como a coreografia íntima e lenta de Há de se dançar com as próprias pernas, conforme a música, de 2006, e o isolamento de Palavras tão longe, tão perto. Estudo para orquestra funde pintura figurativa, arabescos e uma escrita quase ilegível que insinua a intimidade de uma carta pessoal e retorna a suas origens no desenho, num grafismo-partitura que traz a agilidade e a urgência da arte do prazer. O aporcalipse fazia parte da exposição “Porco com arte”, coletiva de 2007 na qual os artistas pintavam porcos-cofrinhos de barro. Para Secchin a origem do apocalipse estava na superpopulação e daí ter povoado seu cofre com homens-porcos e mulheres-porcas nus.

Os quatro Voos noturnos pertencem a obras derradeiras do artista. Nas viagens de avião, Secchin costumava fotografar o brilho das cidades pelas janelas, menos para copiar as imagens do mundo real e mais para recordar o delicado arranjo de luzes tecido pela geografia e a ocupação humana. A visão aérea das aglomerações oferece ao viajante – e, aqui, ao espectador – a chance de apreciar o mundo distante de toda injustiça, desigualdade e violência, numa imagem com a tranquilidade que só a distância pode oferecer. São pinturas terminais. Parecem nos conciliar com as adversidades do dia a dia através da perspectiva no tempo e no espaço em cidades imaginárias, abertas para outras chances e outros caminhos. Ao nos libertarmos da gravidade e voarmos com o pintor a esses instantes em suspenso, rompemos com aquilo que a filósofa Hannah Arendt creditava como a própria quintessência da condição humana: a Terra, “e, ao que sabemos [...] a única capaz de oferecer aos seres humanos um hábitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício”. Ao oferecer um breve instante acima da vida, os sobrevoos acolhem na escuridão a chance de novas existências, sobrevidas em cidades cintilantes despidas de toda a dor e angústia do cotidiano e de nossa própria finitude, com esperanças no futuro e no destino. Se não para nós, para todos nós.

Referências

Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BASBAUM, Ricardo. “2080”: muito mercado e pouca arte. Revista Trópico. Disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1590,1.shl.
FOSTER, Hal (ed.). The anti-aesthetic: essays on postmodern culture. Washington: Bay Press, 1983.
PONTUAL, Roberto. Explode geração! Rio de Janeiro: Avenir, s/d.
WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

De perto, De longe - Centro Cultural dos Correios - 2010 - Fernanda Terra

A nova série de pinturas de Guilherme Secchin surpreende por sua pulsão e contraste com as fases anteriores. O artista nos apresenta, de maneira contundente, a expressão imediata de seus sentimentos de perto e de longe.

Na fase anterior, Terra, Secchin nos convida a navegar em camadas fugidias de memórias de um lugar e um tempo imaginários. Em sua pintura, a construção da paisagem, sempre diluída, ora se mistura a uma cartografia com contornos de mapas antigos, a ornamentos e rosas-dos-ventos, e a uma rara presença do humano, ora se revela única, silenciosa, sempre dissolvida em brumas e nos tons pastel e ocre, âmbar e cinza azulado.

A paisagem, ao mesmo tempo em eu fala de um olhar de reconhecimento, um olhar histórico-arquivístico, apoia-se no imaginário de terras longínquas e inabitadas, é inventada e construída. São notas de um navegante de si, que observa de longe a história e busca mapear, em paisagens interiores afetivas e em uma memória cartográfica, a ausência da conquista: a pintura flutua em algum outro lugar imaginário, através da fatura pictórica e de alguns poucos signos. Neste momento, revela a impermanência, o silêncio, uma geografia de ausências, ressaltada nas telas com rara graça, delicadeza e melancolia.

Já a tela intitulada Vermelho rompe e finaliza este período de criação, ao nos preparar e nos trazer para perto, bem perto de uma nova fase. Trata-se de uma grande árvore vigorosa, que ocupa a totalidade da tela, refletida de cabeça para baixo, como vista através do espelho. Uma Árvore Invertida. Essa árvore imponente possui uma copa frondosa, com galhos secos e ramificados que flutuam por todo o campo visual da tela, como uma intrincada rede de veias e, quem sabe, como uma estrutura de um corpo que pulsa em vontade de vida, submerso em um vermelho sangue totalizante que encerra a obra.

A Árvore Invertida de Secchin encontra-se nas tradições cabalísticas medievais, nas narrativas mais antigas da tradição indiana, no hinduísmo e no próprio Islã. Ao mergulhar as raízes no céu, os ramos se estendem sobre a terra, espalhando-se então por todo o universo e perpetuando a ideia da vida inesgotável, assim como o de um cosmo vivo, em constante regeneração. Na simbologia contemporânea, a Árvore Invertida se apresenta não só como um paradigma do crescimento físico, cíclico e contínuo da natureza, mas como a prefiguração do próprio amadurecimento psicológico do indivíduo, o que implica os motivos ancestrais de sacrifício e de morte, mas também os do renascimento, renovação e imortalidade. A árvore seria, assim, como um eixo, a coluna vertebral do universo. Eixo e coluna vertebral estão presentes na nova pintura de Secchin.

Se nas obras anteriores a representação das árvores reiterava a ideia de paisagem, agora não se trata de representação, mas, sobretudo, da apresentação arquetípica da árvore, como símbolo expressivo, como um signo forte e universal; ao mesmo tempo em que revoluciona a pintura deste período, abre caminho para uma nova fase e transcendência na obra. A força desta pintura única tem o caráter de ruptura e renovação.

É com essa energia de regeneração que Secchin nos apresenta uma série absolutamente nova, viva e instigante de sua obra. Pintor desde os sete anos de idade, o artista reinventa o fazer arte com força vital e com a maturidade de quem já passou vários embates pictóricos. Vemos, neste momento, uma síntese de sua obra, ao mesmo tempo em que uma liberdade plena se instaura no fazer.

A exposição que agora vemos se divide em dois momentos instigantes. No primeiro, intitulado Somos todos iguais, o artista apresenta uma série e pinturas vigorosas com a presença contundente de uma estrutura óssea branca, que dança em primeiro plano e que define e delineia um eixo vertical a todos os trabalhos desta série, como para estruturar e encerrar o que há por vir; como para definir o universo de acontecimentos que vemos por detrás dela. Por vezes, a estrutura óssea abraça o campo visual; por vezes, ela se abre, desarticula-se e inicia uma expansão, deixando de ser forma para ser linha que dança no espaço pictórico, integrando-se aos outros elementos presentes na tela. O que ocorre detrás desta estrutura óssea? Um dinamismo de presenças gráficas. Camadas de tintas: o vermelho, o azul e o amarelo predominam sobre camadas, que desaparecem apagadas por novas camadas. Formas orgânicas: plantas, frutos, órgãos soltos, um coração, vértebras. Signos: palavras, letras, números, pedaços de textos, colagens, uma rosa-dos-ventos e o olho de Osíris, que tudo vê.

Em uma das telas, no canto superior esquerdo, um convite a decifrar um enigma, lemos, seguindo uma mão que aponta: “olhe para dentro”. Em outra, com a palavra “atração” estampada em meio a um vermelho orgânico, vemos parte de um texto que diz: “o começo, o fim, o eterno retorno...” Dentro, fora, perto, longe, vida e morte.

Dança, pulsa, a pintura da Secchin, porém, ainda contida, estruturada, encerrada ainda em um corpo.

No segundo momento desta exposição, intitulado De perto, de longe, vemos a estrutura óssea desaparecer do campo visual, deixando livres os elementos, que se entrelaçam de forma vital e sem preconceito. Agora já não existe mais um primeiro plano e outros sobrepostos, mas sim uma trama, na qual todos os elementos se misturam. O artista reordena os conteúdos e as cores, a luz dos diversos signos anteriores, presentes em outras fases da sua pintura, e os signos atuais, mobilizando sempre novos significados, agenciando novas conexões, circuitos, conjunções, intensidades e, sobretudo, cria um campo de forças capaz de operar a inversão dos signos. Ele fala de uma natureza interna e externa, de perto e de longe, de forma elegante e sensual. Ao misturar órgãos, ossos, plantas, palavras, cores, texturas, o artista compõe naturezas-mortas inversas. Na verdade, naturezas pulsantes.

Se antes uma cartografia da memória, de afetos ausentes, ligada ao passado e à tensão entre memória e história, era fio condutor de suas inquietações íntimas, agora vemos o artista falar de uma cartografia imaginal. Solto e leve, atualiza-se em gesto espontâneo, em vontade de potência, em impulso criador. Agora a memória é vida em pulsão, em acontecimento presente, em exposição, em processo dinâmico. Agora o desejo define o processo de produção. Agora a memória, a intuição, e a imaginação trabalham juntas no fazer artístico e são guia nas escolhas das cores, formas, materiais, temas, técnicas e atitudes.

O processo criativo de Secchin parece originar-se de um estado de profunda tensão e inquietação emocional, que se encontra em regiões de pura sensibilidade; que se deixa atravessar por uma poderosa vitalidade, por impulsos e intensidades; que nos leva a entender a existência enquanto criação contínua. Suas pinturas atuais são instituintes e imanentes, um somatório de forças, um experimentar em si próprio o existente*, sem limitações de campos, um aqui e agora, um dentro e um fora, um perto e um longe, um passado e um porvir, um antes e um depois que sustenta, pelo avesso, toda a forma de expressão: experiência.

Uma experiência como iniciação aos mistérios do mundo; como cisão, que não se separa como ponto máximo de proximidade e de distância, de unidade e de pluralidade. Através das pinturas de Secchin, abandonamos o curso ordinário das coisas. O artista reinventa a sua pintura, ao mesmo tempo em se reinventa a si próprio e nos convida a nos reinventarmos.

*Chauí, Marilena. Merleau Ponty. Obra de arte e filosofia. Em: Novaes, Adauto, dir., Arte e Pensamento. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1994.

Terra - 2005 - Ruy Sampaio

Vista em seus vários momentos, a pintura de Guilherme Secchin sugere uma dinâmica binária: a do surgimento e da desaparição de alguns signos que predominam em cada fase. Uma cartografia arcaizante, em cujas referências arbitrárias terras e águas obedecem menos à geografia e mais às exigências da encáustica, contrastada com os entintamentos a ouro, como nas iluminuras antigas. Um texto poético, muito próximo ao dos calígrafos do Quattrocento, em que a palavra valia em si própria, enquanto ornato. Uma desconstrução da figura, impactada no quadro em total subversão de planos, sem relação com nenhum ponto de fuga ou volumes, como nos melhores momentos da arte pop, dada a ler na vertiginosa urgência de um outdoor. Cada um destes valores plásticos prevaleceu em determinada etapa.

Porém, o mais rico desta obra é que, vista agora, já não é mais em momentos pinçados, mas ao longo de um travelling atento que a acompanhe fase a fase, enquanto processo, o conjunto desse trabalho se revele um engenhoso e muito sutil somatório de todas aquelas signações, cada uma delas transformando a anterior e sendo transformada pela seguinte. Ou seja, a pintura de Secchin é uma construção de sua memória afetiva, na qual cada achado dialeticamente permanece na impermanência da linguagem. E, em paralelo, essa é também uma construção de sua auto-exigência intelectual de homem debruçado sobre o vir-a-ser de sua criação, medindo com cuidado o peso de cada uma dessas incorporações sígnicas, policiando-se contra a tentação do repetitivo, do esquematismo da fórmula.

A multiplicidade e o inventivo de seus tratamentos são, tecnicamente falando, o maior valor do seu trabalho. Justamente essa recusa de se deter na exploração de achados – por felizes que eles tenham sido – é que lhe permite propor uma fábula sem maiores complicações ou engajamentos mais imediatos, à maneira dos mestres da Decoration Art.
Aqui, pratica-se uma pintura de grande riqueza não apenas visual, mas plena de desafios de natureza oficial, de soluções que não pertencem ao campo do aprendizado ou do imitado. Algo como eliminar a etapa da pigmentação na encáustica e aplicá-la como simples veladura incolor sobre a tinta acrílica, em busca de uma textura que traduza, no plano visual, a leveza da fábula (tríptico Chamando o Vento). Ou como instaurar o inusitado diálogo entre a têmpera e a tinta acrílica em busca de uma disseminação mais homogênea da luz (tela Jacarandá, Pau-Brasil, Embuia...). Ou a dissolução da tinta iridescente, aplicada sobre um entintamento já quase diáfano (tríptico Alvorada).

Obviamente, ele não inventou nenhum desses procedimentos; não é esse o ponto. O que importa é o partido estético que extrai de cada um deles, não os manipulando como truques ou enfeites do discurso plástico, mas dispondo-os com o refinamento e o senso de oportunidade com que opera a multiplicidade e a ludicidade desses e de muitos outros recursos, numa economia de meios que é uma engenharia do sutil e do contido.

Se, na linha daquela observação inicial, sua botânica, seus dons de calígrafo, sua cartografia - mesmo quando não mais protagonistas – estão presentes em seu trabalho, como ocorre a um poeta que não tenha esquecido os acentos e os ritmos de outros momentos de sua canção, agora ele os convoca em boa parte dos quadros como vinhetas incidentais (o que não quer dizer menos importantes), tributárias ao elaborado da mancha que, principalmente nas obras de maior formato, se anuncia como uma das principais linhas de força do trabalho. Isso não é de todo inesperado para quem venha acompanhando o artista, dada a constância com que sua criação mais recente aponta para a depuração e para a síntese.

E não apenas no plano formal, mas também na temática. Ao eleger o motivo terra para essa exposição de agora, Guilherme Secchin empreende algo como um inventário de seu chão, assim considerado não apenas o espaço físico que transita e nos passa em flagrantes tão envolventes. Mas o de uma outra terra, uma dimensão identitária, onde estão as paisagens, os mapas e a escrita mesma de sua memória existencial, de sua singularidade, o seu real interior que somente poderemos ler nos termos da cumplicidade e da empatia.

Ou, como melhor disse Marguerite Yourcenar: “Certos pintores sentiram isso: o contato direto com o real é qualquer coisa que me parece absolutamente essencial, quase misticamente essencial. Em um senso quase fisiológico, a verdade, até onde nós podemos enxergá-la, depende de nos mantermos fiéis à realidade, como Nietzsche falava de se manter fiel à terra”.

Paisagem Brasileira - Conjunto Cultural da Caixa Econômica Federal - 2003 - Solange Casotti

“A linguagem da pintura, como toda linguagem artística, é intraduzível. O que nos diz um quadro está à vista: são formas e cores. Mas há algo mais: a pergunta que nos faz, a visão que nos impõe, o segredo que nos revela ou a ponte que nos estende para que penetremos nesta ou naquela realidade. ” Octavio Paz, poeta e ensaísta mexicano, nos fala da dificuldade de traduzir o significado de uma obra de arte em palavras e conceito. A obra do pintor Guilherme Secchin aponta para uma ideia de descoberta e prazer. O ouro e o castanho tingem suas paisagens permeadas de ícones onde são retratadas florestas, margens, caligrafias e arabescos, formando uma cartografia singular de luminosidades díspares e encantadoras. Este conjunto tem características que caminham lado a lado com o neobarroco, seduzindo o espectador de tal forma que o induz a fazer parte desse universo.

Definir as sensações que podem provocar as instigantes e prazerosas telas de Secchin é falar de uma alusão ao paraíso perdido, uma visão contemporânea de uma terra idílica, uma natureza pura e ao mesmo tempo soberba. Uma visita ao passado que se interpõe em camadas, como capítulos de uma viagem presente. Presente no olhar e num mundo de sensações. As mesmas que não ousaremos definir, além daqueles dois adjetivos deste começo de parágrafo. Um convite para o olhar, à espera de que a partir daí se estabeleçam trocas e sentimentos que cada um verá com formas e luzes particulares.

Guilherme Secchin - Centro Cultural dos Correios - 2000 - Paulo Reis

Nesta terceira série de pinturas brasilianistas, o artista foca ainda mais os detalhes que antes ocupavam o canto da tela: surgem enormes abricós de macaco, limões, cajus e folhagens que despencam do céu, inebriando os sentidos pelas cores e formas avantajadas. Nas séries anteriores, os frutos e folhagens eram complementos das paisagens. Nesta, o artista traz os detalhes para o primeiro plano, retomando as pinturas de Albert Eckhout, com um pouco de Rugendas e Debret, num misto de história relativizada e nostalgia de um paraíso perdido em algum lugar da nossa memória.

Novas Pinturas - Casa de Cultura Laura Alvim - 1998 - Paulo Reis

Um Brasil atávico, que insiste em manter encoberto um pedaço de sua sangrenta história, esse é o país do pintor Guilherme Secchin. Sua suíte de cores e tons devassa um idílio maravilhoso de luzes e cores, frutos, cheiros, flores e águas límpidas. Mas esse paraíso perdido em meio às selvas - como imaginaram os franceses; essa Índia ocidental - como quiseram os holandeses; é o espelho mais distorcido da sua história. Post, Rugendas e Debret jamais imaginariam que fôssemos capazes de erguer uma sociedade quase sem vestígios daquela então Terrae Brasilis que a todos encantou. O que faz Secchin é reescrever essa história em uma outra Delineações Arquetípicas das Regiões do Brasil, desta vez nostálgica, com um quê de cica, meio amarga, meio doce, com sfumatto, inocência perdida.

Essa nova Suíte Brasiliana, que continua a trajetória das suas paisagens brasileiras, traça esta cartografia nostálgica de um paraíso perdido nas páginas de uma história que urge ser recontada. Orgulho e vergonha, sentimentos contrários, fazem do Brasil um país ímpar, aquele onde somente os grandes artistas abrem as cortinas do passado, sem medo de enxergar sua própria face, menos ou mais gloriosa.

Esta exposição de Guilherme Secchin pode ser tomada como uma “catequese para o próximo milênio”. Um relativismo às avessas, meio gauche, que insiste em perguntar: valeu a pena? Mesmo a beleza contida nas paisagens de suas obras não enfraquece o real motivo artístico: o de perguntar sempre.

Suíte Brasiliana - Museu Nacional de Belas Artes - 1997 - Paulo Reis

O Pintor volta-se para o passado feito de fragmentos de sua memória afetiva e em uma tela pode surgir um fruto suculento, doce e colorido, que aparece num canto. Trata-se de uma imagem que facilmente reconhecemos. Como um cartógrafo delirante, Secchin vai recriando paisagens perdidas no imaginário longínquo, nacos de memória de uma cidade que se foi com a fome destruidora da modernidade. Ele não se deixa enganar, pois o que está perdido recupera-se pelo milagre da arte. Encantar através da lembrança é a suprema arte. A Suíte Brasiliana de Guilherme Secchin exibe frutos vermelhos, flores vivas, paisagens delirantes, fragmentos de arabescos barrocos. Numa atitude anti-cópia, ele interpreta de forma bem-humorada um período brasileiro muito rico da nossa história e arte. Desta maneira, ele aproxima seu trabalho da postura de outros artistas brasileiros contemporâneos, de ir em busca de um passado afetivo, e às vezes cruel, para reinterpretá-lo de modo particular.

Novas Pinturas - Centro Cultural Candido Mendes - 1993 - Amador Peres

O trabalho atual de Guilherme Secchin mantém um código gestual gerador de signos gráficos e pictóricos que, dentro de uma vertente da área contemporânea, reafirma a questão da pintura como uma linguagem autônoma, além de revelar vivências pessoais através de determinados temas e seus significados.

Após o tempo de maturação das “imagens”, utilizando a tinta acrílica, técnica que favorece diluições, transparências e veladuras, exigindo também muita concentração e determinação do pintor em função da rápida secagem da tinta, Guilherme desenha e pinta seus quadros em tempo bastante ágil, quase num só fôlego, e a figuração final guarda a marca desse impulso, desses momentos de intensidade e da velocidade de produção.

Desta forma, Guilherme Secchin cria cores, personagens e pinturas de forte conteúdo dramático.